Depoimentos

Paulo Ess, Mestre em Teoria, História e Prática do Teatro, Doutor em Teoria, História e Prática do Teatro, Pós-doutor pela UFRJ:

Depois dessa pandemia e a comodidade do online, sair de casa para ver teatro, tornou-se um objeto de luxo. O ritual de vestir-se e preparar-se para ver um espetáculo teatral é deveras emocionante, por tudo que esse gesto desperta em nós. Chegar com antecedência, ouvir o burburinho do público, nos embala para o que virá. É sempre uma festa, um encontro de almas. Stanislavski, já no século XIX, traduziu isso tão bem.

Teatro é teatro. É um pacote completo. Nos acaricia, nos envolve com seus braços de mãe. O teatro é uma mãe, daquelas que dá de mamar, conta história e põe pra dormir.

Sempre é bom ver teatro. É saudável, é tesão, prazer e gozo. Teatro tem energia, vibra, aquece, esquenta. Estamos vivos, o calor se irradia em todos nós. A energia que vibra, vem do palco, no brilho das atrizes e do ator. E o público, como um goleiro, recebe a bola e rebate na mesma sintonia. Foi assim que sai de casa hoje. Preparei-me. Lavei o corpo pra depois lavar a alma. Pus a melhor roupa, espalhei perfume como se incensasse o corpo para Exú. Sempre é uma festa. Um encontro. Um acasalamento, uma chegada, uma partida.

Quando cheguei naquela Casa da Esquina, a casa ainda estava lá. A esquina era a mesma de antes. O ritual de formar a fila, entrar e ocupar o seu lugar. Apagar a luz para acender a magia e deixar seguir. Foi assim que fiz.

Em cena, muito sentimento envolvido, que não está no roteiro. A satisfação de estar ali. Dessa maneira o texto vai se materializando, dando forma a tudo ali estabelecido. Não me permiti fazer análise do que estava vivendo, deixei tudo fazer parte daquele momento. Concordo com Artaud, quando diz que a representação teatral é única, nunca representativa, nem igual todo dia. O que é feito ali, é por um único dia.

Assim, me levaram à GRATILUZ – A tragédia. Isabelinha, Rogério e Luiza me permitiram isso. Um teatro efêmero como deve ser. Um teatro pulsante, quente, vibrante, marcado a cada respiração. Vi um teatro e seu paradoxo. Seu teatro afiado, pontiagudo, ácido, simples e complexo, como deve ser. Como é a vida.

Um texto que corta, abre um flanco em nossas vidas. Ao mesmo passo que é cruel, também se transforma em poesia urbana, social e transgressora dos valores e respeito humano. Percebemos o autor presente, quando expõe seus personagens, desnuda o caráter de cada ser. O autor nos permite fazermos uma leitura de sua poesia urbana, sem fim. Ele também se expõe, nos leva ao absurdo das atitudes. São reflexões do que somos capazes de fazer e agir. Seria esse o paradoxo do texto e da vida. Estamos expostos a tudo e a todos.

O autor nos expõe a uma situação perigosa. Perigosa porque ele faz articular muito bem, texto e representação. Para isso, ele conta com a qualidade e valor artístico do elenco, em cena. Está aí a situação do perigo. Ator e atrizes expostos, dispostos, postos em cena, ao desafio. Que emocionante é sentir tudo isso. A repugnante relação do opressor e oprimido, está lá, como está na vida. O elenco com segurança, vai construindo ao longo do texto, uma ação, nessa relação social de patrão e empregada, na prática conveniente da classe dominante. Esse teatro aí, não é somente diversão. Com sua linguagem direta e transformadora, exibe essa relação social, perversa e censora. Para que esse texto se complete, foi preciso a comunhão de excelentes atrizes e um ator. É bastante curioso ver esses três artistas maduros, experimentados, em cena. E lembrar de tê-los visto iniciando suas vidas no teatro.

Dona Graça, é uma joia lapidada por Isabella Cavalcanti. Essa personagem, de personalidade forte, enfrenta todo tipo de dificuldade, que ao meu ver, expõe suas vontades. A atriz construiu uma personagem disposta e preparada à enfrentar todo tipo de situação-problema. O que ela expõe, são as relações humanas. Mulher resistente e disposta a enfrentar obstáculos.

Dona Lúcia brilha nos olhos da atriz Luiza Torres, que cuida tão bem desse personagem. Essa atriz, abraça seu personagem com tanta firmeza e afeto, que se misturam, se mesclam numa perfeita harmonia necessária. Dona Lúcia parte corajosamente para o enfrentamento. Ela munida de suas armas, se opõe. Assume seu gosto de mulher guerreira e desafiadora, quando assume carregar no ventre, seu filho.

Pronto. Está traçado o destino dessas duas mulheres trabalhadoras, exploradas em seu trabalho profissional. Elas são tantas mulheres que existem na vida, mas com uma diferença: elas resistem, se unem em nome de todas, elas partem para o ataque. A desforra diante de uma relação opressora. Elas nos representam.

Mas, para isso, elas duas se deparam com a força opressora do senhor Neo, o chefe, tão bem vivido pelo grande ator, Rogério Mesquita. Rogério, além de autor dessa obra, também está em cena, pleno. Ele não construiu seu personagem somente calcado em signos e códigos opressores, mas também nos oferta um personagem denso que cresce e se agiganta, pra depois desmoronar diante de sua opressão. Essa desconstrução para o ator, torna-se um exercício rico de criação de personagem, seu caráter e valores éticos. Seu objetivo é o poder, o domínio sobre os outros. Sua empresa é sua trincheira e como um tanque, ele esmaga valores e relações sociais. Sua relação é muito comum nas relações trabalhistas. Ele quer conquistar uma posição de poder e estabelecer domínio sobre gente, a qualquer custo.

Enfim, posso dizer que vi o espetáculo com sua força, equilíbrio, vontades e conflito. Diria como Patrice Pavis, quando diz que, o conflito se expõe no decorrer da ação. E digo mais, o espetáculo que vi, trata de nossas vidas e as consequências dessa vivência. Meu desejo é vida longa ao espetáculo GRATILUZ – A TRAGÉDIA. E gratiluz à Rogério, Luiza e Belinha (Isabella), por fazerem parte da minha vida. Um beijo para os três.

Raquel Lima, jornalista:

Uma Peça Agridoce
Bom d+!!!

Há quem imagina que para deixar mensagens atuais e/ou contundentes somente funciona com performances inovadoras, afetadas e que, necessariamente, polemizem quer seja pelo grotesco, pelo provocativo ou pela apelação. Vão deixar o recado? Podem até deixar. Vão conseguir apoiadores? Nem sempre e, algumas vezes, é desnecessário. Discurso conservador?! Ih, nem tanto, talvez seja até hodierno quando o chocar vira padrão.

Esse não é o caso de Gratiluz, uma peça despretensiosa, que dá o seu recado deixando um risinho conivente na plateia de quem, de algum modo, passou, presenciou, sentiu, sabe, imagina ou percebe o que ocorre em alguns ambientes corporativos.

Posturas, comportamentos “tóxicos” que migraram e não são mais exclusivos desses locais. Seus termos e “visão de mundo” se alastraram, indiscriminadamente.

Mas, sem análise social aqui, o bom é que a peça dá o seu recado de forma simples, clara e provocando o riso espontâneo, contido ou não mas que, nas entrelinhas, demonstra que o discurso da positividade gratuita não engana ninguém, pelo contrário, beira ao ridículo mas que, infelizmente, é utilizado para domar sentimentos e adestrar comportamentos.

Sem a intenção de classificar os atores que estão em cena, vale destacar a facilidade com que falam o texto visto que são palavras que infestaram o cotidiano de forma vazia, servindo apenas para enfeitar discursos e justificarem absurdos travestidos de “meritocracia”.

A atriz Isabella Cavalcanti nos brinda com um retorno vivaz aos palcos, acompanhada pela envolvente Luiza Torres e o o sempre produtivo (ou melhor, vamos evitar essa palavra), criativo e atuante Rogério Mesquita, também responsável pelo texto preciso da peça que, de forma sucinta e sem necessidade de aprofundamentos, dá o seu recado pois nem sempre é necessário tornar complexo o que há muito banalizaram, assim como banalizaram palavras cujo significado tornou-se vazio pela instrumentalização descabida feita pelos gurus de plantão.

Ah, o etarismo também está lá, assim como as preferências por determinado sexo nas “promoções”, bem como a constatação de que nem sempre o mais inteligente ou dedicado é valorizado. Ou seja, para além das palavras escrachadas, as atitudes (nem tão veladas) também fazem parte das opressões (principalmente a feminina), sem falar em outras provações que envolvem a maternidade e a liberdade da mulher em distintos espaços.

Apesar de ter iniciado citando o termo agridoce, talvez poderia ter citado que a peça tem uma pitada de gosto amargo afinal, como destacado na divulgação da peça, Gratiluz é baseada em absurdos reais. Uma tragédia que usa da ironia que nos faz rir, e também se indignar com a manipulação no ambiente de trabalho que resvala para para a vida das pessoas.

Apesar do tema já ter sido tratado de outras formas e por outros tipos de manifestações, é um assunto bastante pertinente.

Recomendável que seja assistida também por RHs, “líderes motivacionais”, gurus e influenciadores “good vibes” e, claro, por muitos que estão saturados de tantas balelas.